Devo confessar, ainda mais nesta edição especial sobre incêndios: “eu era criança e não conhecia a maldade”. E, assim, acompanhava meu pai, um incendiário contumaz, todas as vezes que ele tacava fogo no Morro de Caxambu, no Sul de Minas, onde nasci e do qual éramos vizinhos.
Todos os anos, era só a seca se encontrar com a primavera, que ele repetia esse ritual sem culpa. Pegava um barbante bem grosso, cuja brasa demorava a queimar. Ia até o pé do morro, onde a vegetação atlântica era exuberante e fazia brotar as famosas fontes de águas minerais. Juntava uns papéis, gravetos e folhas, e só acendia o barbante quando faltava uma meia hora para o sol se por e o escuro da noite chegar. Apesar do ato criminoso e antiecológico, era um espetáculo inegavelmente chocante que impressionava e fazia toda a população ver a morte em chamas da natureza.
Coisa de quem é do signo de Escorpião, meu pai herói era passional e perfeccionista. Ele me mandava, então, embora pra casa e procurava ora o bar mais cheio da cidade, ora o barbeiro mais livre. Ficava ali, tomando cafezinho em público ou fazendo a barba para todos vê-lo, como testemunhas da sua presença e surpresa, esperando o primeiro grito infalível:- É fogo gente!
Ele então se misturava indignado com a população inteira já fora de suas casas, para também ver a beleza indescritível do fogo noturno subindo o morro do cruzeiro acima sem poupar um só ninho de passarinho.
Ninguém nunca descobriu isso. Nem eu, exímio matador-mirim de passarinho com estilingue, a exemplo do meu pai, achava isso errado. Éramos ignorantes, por falta de informação e educação ambiental. Tal como ainda devem achar todos aqueles que incendeiam hoje “criminosamente”, sem culpa nem dor, o que nos resta de natureza em todas as geraes do planeta. E ainda temos de tentar educá--los por já termos feito igual, sem multa nem prisão.
Isso me faz lembrar o pensamento e perdão ecológico que o mestre Hugo Werneck nos dizia. Segundo ele, ninguém é ambientalista por acaso nem virtude. Nem pode se gabar disso. Pelo contrário, todo ambientalista é um ex-degradador da natureza. E hoje aprendeu, arrepende-se e tenta compensar o mal que fez contra a natureza por falta de conhecimento e amor.
Meu pai, se estivesse vivo, hoje entenderia porque não se deve tacar fogo em morro algum. Nem ter gaiola para prender, alimentar e ouvir os passarinhos cantarem.
Atualmente, olha a economia natural, os canários-da-terra que ele tanto amava e aprisionava vivem soltos, alimentam-se sozinhos e cantam por contra própria. Nem cachê eles nos cobram. Vivem por viver. Por eles, meu pai hoje jamais acenderia um palito, de fósforo. Ele também viveria por viver.