A segunda etapa da viagem reforçou a ideia de que a Índia é mesmo um país de profundos contrastes. Meus olhos acompanhavam a realidade do abandono ambiental desfilando pela janela do carro, à medida que avançávamos por vilas e cidades. Mas meu coração pedia paz, quem sabe vinda da oportunidade de experimentar a tão cantada espiritualidade indiana, passando alguns dias num templo.
Fiquei matutando sobre a difícil missão diária desse povo. Produzir naquelas terras exauridas por uso ininterrupto durante séculos comprometia de maneira irremediável o resultado da produção. Mas como parar, se todo esse mundaréu de gente tem de comer todos os dias? Fechei os olhos e me vi andando no meio dos roçados de milho e feijão, que os lavradores de nosso Gerais cultivam para colocar a mesa o angu carinhosamente preparado com fubá de "munho d'água", tocado no fundo do quintal com água pura descida da serra esverdeada.
Eu estava muito longe daquela vidinha tranquila e havia me metido numa bolha de realidade repleta de ambiguidades. A partir desse momento, passei a trazer comigo a compreensão interna de que o planeta não tem como atender ao ritmo frenético de desenvolvimento a qualquer custo e saciar as necessidades básicas da população que explode planeta afora.
Uma imagem que me chamou atenção desde que comecei essa viagem foi a das linhas de transmissão de energia e das redes de distribuição. Elas são visíveis por toda parte, cortando o país de norte a sul, mas a qualidade dessa energia é muito ruim. Diariamente, ocorrem cortes no fornecimento por pelo menos duas horas, às vezes quatro ou mais. O comércio e as pessoas já se habituaram a essa deficiência crônica e em todas as casas, escolas, templos e estabelecimentos comerciais são enfileiradas muitas baterias- dessas usadas em carros e caminhões - para garantir o abastecimento. Comecei a ruminar se ocorre um descarte adequado desse equipamento altamente contaminante.
Procurando pacificar minha preocupação, questionei o amigo Cláudio, que viajava ao meu lado:
- ‘Essas baterias são descartadas de maneira adequada?’ Surpreso com a indagação, ele sorriu irônico.
- ‘Tamos na Índia!’, foi sua resposta enfática. É. Eu começava e entender como é estar na Índia.
Logo adiante, paramos num restaurante à beira da estrada e para esticar as pernas antes de almoçar, resolvi dar uma volta por perto. A poucos metros dali, corria um esgoto fétido com uma montanha de lixo espalhado em volta. Até aí tudo normal e sem muita diferença do que eu vinha vendo até então, mas no meio daquela imundície havia um boi pastando calmamente. Voltei ao restaurante sem muito palpite de almoçar e segurei a fome com uma barra de chocolate.
O modelo de desenvolvimento tecn ológico adotado pela grande maioria dos povos resulta numa enormidade de lixo produzida diariamente. Aqui no Brasil, a média é de um quilo de lixo por habitante, totalizando algo em torno de 190 mil toneladas/dia. Isso é um grande problema, mas em países como a Índia, a média que cada habitante gera diariamente é de aproximadamente 400 gramas, ou seja, 480 mil toneladas/dia, sendo que quase a totalidade desse lixo não passa por qualquer tratamento ou beneficiamento: é despejada diretamente na natureza.
Até pouco tempo, as tradições e modus vivendi indiano geravam resíduos em grande parte biodegradável. Com a introdução do plástico no cotidiano de consumo, o resultado final hoje é trágico. Sem tratamento adequado, essas montanhas de lixo se acumulam e formam imensas cordilheiras a céu aberto. Esse é um dos custos da ocidentalização dos meios de produção, em detrimento dos costumes milenares vivenciados poucas décadas atrás.
RUMO À INSANIDADE
A viagem seguia seu curso lento, quebrado eventualmente por um bando de camelos atravessando a estrada ou pela alegria vistosa das camionetes praticamente sem lataria, enfeitadas com fitas, colares e bandeirolas, carregadas de indianas belamente vestidas com seus sáris multicoloridos, numa alegria descontraída e contagiante.
Dentro do carro, as conversas em inglês predominavam e como eu não entendia muita coisa, continuei com meu monólo go interno. Vi dezenas de poços artesianos sendo usados pelas comunidades tanto para irrigar plantações de arroz e mostarda, quanto para servir aos moradores em suas tarefas cotidianas de lavar roupa, vasilhas ou tomar banho.
Não é raro vê-los se banhando publicamente em volta desses poços. Com tanta contaminação na superfície, fiquei me perguntando se essas águas retiradas do subterrâneo ofereciam qualidade. Todos os rios, cursos d'água e lagoas que vi durante minha estada na Índia estavam visivelmente contaminados e impróprios para consumo. Eram muitas as evidências de como muita gente vivendo numa área delimitada provoca graves prejuízos ambientais.
O norte da Índia tem solo pobre, pedregoso, vegetação rala, seca e espinhenta, semelhante à nossa caatinga. No inverno, o calor habitual dá lugar à friagem que desce do Himalaia. Os indianos caminhavam pelas ruas e estradas enrolados em longos mantos, cachecóis e toucas, para se protegerem de um frio que não senti. E me bateu uma saudade dolorida daquela friagem gostosa que tantas vezes senti nas festas juninas de São Gonçalo e nas ladeiras de Diamantina.
Durante o percurso até Vrindavan, passei a botar reparo numas enormes bolachas esverdeadas secando ao sol, sobre os telhados ou amontoadas nos quintais.
- ‘O que é aquilo?’, perguntou Cristina, apontando para os bolachões. Dentro do carro ninguém soube dizer, mas a resposta não tardou a se desenhar à nossa frente. Algumas mulheres misturavam estrume de vaca com água e despejavam essa massa, ainda mole, numa espécie de prato, para dar o formato arredondado. Depois de seco, esse material é utilizado para alimentar fogões, uma alternativa criativa que os indianos adotaram, já que a imensa maioria da população não tem como comprar gás ou lenha para preparar suas refeições. As matas são escassas ou nem existem por perto.
ATÉ KRISHNA CHORARIA
Finalmente, chegamos a Vrindavan, no fim da tarde, e Madavan nos contou um pouco da história dessa cidade.
- ‘Aqui há mais de cinco mil templos e milhares de devotos visitam a cidade a cada ano, para participar dos vários festivais relacionados com as cenas da vida do deus Krishna na Terra. Este é um lugar considerado sagrado por todas as tradições, pois foi aqui que Ele viveu sua infância, nos pomares carregados de frutas, brincando e se divertindo em meio à mata, banhando-se nas águas limpas e puras dos rios que cortavam a região.’
Mas isso aconteceu há milhares de anos e o que vi lá é algo que beira a insanidade.
As ruelas estreitas são cortadas por canais de esgoto a céu aberto dos dois lados e o fedor impregna tudo e todos. São colocadas lajes sobre as calhas de esgoto e por elas se dá acesso às casas, lojas e aos milhares de templos espalhados pela cidade. Depois de uma chuva que caiu durante a noite e parte da manhã seguinte à nossa chegada, caminhar pelas ruas se tornou um exercício heróico de abstração da realidade.
Porcos, macacos e vacas comiam restos do lixo e as pessoas transitavam em meio à lama escura e pegajosa formada pela intensa poluição urbana e pelo transbordamento dos esgotos. Ali, tive a sensação de estar na cidade mais imunda do planeta. Os macacos tomaram conta da cidade. Num primeiro momento, os achei interessantes e divertidos, mas logo percebi que todas as casas eram rodeadas por grades, para evitar os saques, pois para sobreviver, os macacos agridem e lançam mão de todos os artifícios em busca de alimentos.
A recomendação geral é não sair na rua usando óculos ou máquina fotográfica, pois eles tomam pelo simples prazer de destruir. Na saída dos mercados ou mercearias, os atendentes alertam sobre o risco de um ataque aos alimentos comprados e, por isso, eles embalam tudo em sacolas pretas. Distraído com tantas novidades, lá ia eu, entrando no portal que dava acesso ao templo em que estava hospedado, quando um desses animais pulou no meu ombro e tentou, sem sucesso, me tomar o pacote de compras que eu trazia debaixo do braço.
- ‘Ei, que isso... Me solta!’ Gritei, numa reação automática. Com coração quase saindo pela boca, de tanto susto, tive de me sentar numa mureta para controlar a bambeza das pernas, antes de entrar em 'casa'. Nunca havia imaginado passar por uma situação dessas e descobri, na prática, que os macacos já sabem que as sacolas negras escondem alimentos.
PAZ COM LIXO?
Do rio onde Krishna se banhava, de acordo com Madavan, só consegui visualizar algumas poças de águas pútridas, aqui e acolá, acompanhando um filete de água com muito lixo esparramado em volta, animais pastando numa vegetação rala e crianças brincando em meio às montanhas de entulhos. Só depois fiquei sabendo que esse cenário era o rio.
Difícil acreditar que Krishna esteja em paz com o que vi no local onde um dia ele escolheu brincar e se divertir. Internamente, meu coração não conseguiu conciliar tanta religiosidade demonstrada pelos devotos nos templos, com o que considerei ser uma das últimas fases da degradação ambiental urbana.
Confesso que me senti incapaz de harmonizar tamanha sacralidade com a imensa profanação urbana, a devoção com a podridão daquela cidade. Anos atrás, quando eu ainda dava os primeiros passos rumo à minha busca espiritual, aprendi com uma mestra e companheira que a desorganização externa é reflexo imediato da desordem interna.
A pergunta que até agora não quis calar é como uma cidade que está completamente atolada em lixo - com esgotos fétidos expostos ao olhar e ao olfato dos moradores e visitantes, montanhas de entulhos e obras inacabadas por ruas e becos - pode representar paz espiritual?
Fiquei buscando uma explicação razoável para essa realidade. O máximo que consegui chegar foi à suposição de que a cultura indiana acumulada por milênios provoca uma espécie de "congestionamento" de informações, gerando um padrão de resposta muito lento ao nosso olhar ocidental. É como se houvesse uma espécie de anestesia coletiva frente aos problemas e desafios cotidianos. Onde existe muita luz é sabido que a escuridão se torna ainda mais profunda. Seria isso?
RECORDE EXPLOSIVO:
É curioso saber que os indianos adoram bater recordes e um deles me espantou. Durante prosa descontraída com um morador local, ele me contou, orgulhoso, que "no período das monções, o calor na cidade chega a 54°C! Vrindavan está registrada no Guinness Book por ser a cidade habitada mais quente do planeta!" Nem tentei imaginar como funciona essa combinação explosiva de calor, sujeira e chuva.
TEMPLO DO ALIMENTO SAGRADO
Comidas gordurosas e condimentadas, preparadas com pouca higiene, são 'prato cheio' para a indigestão. Guru arrogante inquieta corpo e alma·
Nosso guia, Madavan, que havia se recuperado de uma forte gripe, estava agora acamado com um quadro de desidratação provocada por diarréia, dores abdominais e vômitos. Coitado do moço! Mas a recaída dele era fácil de ser explicada. Nossa alimentação era preparada e servida por uma família que, há quinze gerações, é a responsável pela manutenção do templo, ou seja, há aproximadamente 500 anos eles tomam conta do local.
O alimento preparado ali recebe o nome de Prachada e é considerado sagrado. Estávamos alojados no 2° andar e, no horário do almoço, me ofereci para ajudar a subir com as panelas e travessas. O que vi lá embaixo não foi muito estimulante para o meu já depauperado apetite. O sujo e o limpo disputavam harmonicamente os espaços e os macacos dependurados nas grades laterais e acima da área de preparado dos alimentos acompanhavam atentamente para ver se recebiam algum tipo de recompensa.
A refeição era composta de pratos variados de arroz, diversos tipos de lentilhas, legumes, caldos e bolinhos fritos, todos excessivamente temperados com as clássicas especiarias indianas e sempre muito apimentados. Os hábitos higiênicos duvidosos, o consumo abusivo de alimentos gordurosos e o exagero nos condimentos provocam uma combinação deveras perigosa. Adoecer, então, é só uma questão de tempo.
Recusar a Prachada é sinal de grande desrespeito aos anfitriões, mas foi inevitável. Só de sentir o cheiro da comida meu estômago dava nó. Daí em diante, na hora do almoço, disfarçadamente, me desligava do grupo alegando mal-estar e, no quarto, comia castanhas, bolachas com bananas e frutas desidratadas.
Meu Deus! Onde eu havia me metido? Como sair dali? Minha cabeça girava procurando uma saída e não encontrava. Fui me acabando, junto com Madavan, e nem mesmo a possibilidade de convivência com a espiritualidade local me trazia alguma paz. O guru espiritual do templo era um norte-americano arrogante, com quem não tive qualquer empatia.
Certa manhã, ele nos convocou para ajudar no serviço de limpeza, pois os indianos ignoram a sujeira acumulada pela poluição, pelo movimento das centenas de devotos que passam diariamente pelo local, das vacas que vivem nas dependências da casa, dos macacos que esparramam excrementos por todo lado e dos restos de construção amontoados ao redor da construção principal.
Foi assim que me vi municiado de balde, vassouras e panos, para assear algo que há tempos não sabia o que era limpeza. Em nome da esperança de dias melhores, permaneci horas debaixo de um sol abrasador, suando em bicas, tentando encontrar um atalho rumo à nossa verdadeira tarefa na Índia. Sinceramente, eu estava ali buscando a paz, o silêncio, a harmonia e a compaixão tão presentes nos textos védicos.
Mas o que ouvi foram mantras cantados através de uma aparelhagem de som que os reproduzia de forma distorcida e num volume insuportavelmente alto, transformando as orações num barulho infernal. A imundície local, associada à visível soberba e arrogância na condução da espiritualidade, me deixou completamente sem chão. Uma sombra passou a rondar meu coração.
Onde estava a humildade que tantas vezes vivi junto ao meu amigo e mestre espiritual, o velho Agripino? Seus ensinamentos repassados de forma simples, em meio à dura realidade da Favela do Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, ganharam novamente minha alma e, de repente, uma urgência tomou conta de meu coração.
Eu havia chegado ao meu limite e estava a ponto de explodir. Apesar das implicações que isso acarretaria, decidi ir embora. Mesmo sem o nosso guia para nos conduzir até os fabricantes de incens os, sem falar e nem entender muita coisa do inglês e sem conhecer as pessoas certas, senti que minha sanidade estaria profundamente ameaçada se continuasse ali.
DIFÍCIL DECISÃO
Na manhã seguinte, insisti numa conversa com Madavan. Ele veio até nosso quarto para discutirmos a situação enrolado numa manta, apesar do calor. Sua condição física continuava seriamente comprometida e não havia previsão de melhora. Cristina e eu decidimos seguir sozinhos. O tempo corria e o compromisso com a comunidade de São Gonçalo do Rio das Pedras e o financiador do projeto de elaboração dos incensos, PPP-ECOS, pesava em nossas costas.
Foi uma decisão difícil, mas chegamos a um acordo. Madavan aceitou e disse:
- ‘Acho melhor vocês seguirem viagem até a cidade de Pondicherry e, depois, até Auroville, uma vila próxima. Há décadas está em andamento por lá um grande projeto de sustentabilidade, envolvendo mais de uma centena de países, em parceria com o governo indiano. Muito provavelmente vocês vão encontrar pessoas falando português ou espanhol. Eles também têm várias fábricas de incensos estabelecidas por lá.’
Era tudo o que eu precisava ouvir.
- ‘Posso ajudá-los a ver a melhor forma de viajar’, se ofereceu Laís.
Imediatamente, tomamos providências para seguir viagem, definindo um roteiro curto, que incluía uma rápida parada em Agra, para visitar o Taj Mahal, retornar de trem até Nova Délhi e, de lá, seguir de avião rumo a Pondycherri e Auroville. Em minutos arrumei as malas e parti acompanhado de Cristina, com o coração pulando de alegria, por ter deixado Vrindavan e todas as suas contradições para trás.
Mal sabia eu que me aguardavam, no caminho, surpresas milenares e uma experiência dantesca na estação de trens de Agra!
Continua na edição do dia 23, lua cheia de setembro.