ALÉM DA BIOLOGIA

Ana Ester Nogueira (*) ana.ester@procurarse.com.br

Edição 23 - Publicado em: 30/11/-0001

Nos últimos artigos, insisti em falar da biologia do caçador. Mas, é importante ir além. Ultrapassados os determinantes físicos, nos deparamos com a vitalidade, os sentimentos, a consciência de si mesmo, o ‘Eu’ mais profundo e essencial, a consciência do coletivo e do cósmico. Os seres humanos têm essas dimensões maiores. Aspectos não mensuráveis em visões materialistas e, por isso, mais obscuras para conceitos que priorizam a objetividade quantificável. Ficar reduzido aos determinantes biológicos é empobrecer universos pessoais e de toda a humanidade.

Antes da participação efetiva das mulheres no mercado de trabalho, a identidade masculina era extraída da sensação de poder usualmente associada à potência. Ou seja, a potência simbolizada pela “espada”, pelo fálico, representava o “viril, forte, enérgico, másculo, valente”, que são sinônimos de macho/masculino. Sendo assim, penetrar a vida (comportamento interventor) e as pessoas era a demonstração dessa potência masculina.

A atualidade evidencia: a) a procriação deixou de ser o objetivo da espécie; b) os alimentos tornaram-se acessíveis sem guerras; c) as mulheres podem garantir seu sustento e até de seus filhos; d) a sustentabilidade ecológica é determinante da sobrevivência global. Tudo isso impôs uma revisão dos elementos definidores da identidade masculina. A potência não está mais depositada só nas referências externas de ação e força. Tanto mais impotente ou ameaçado se sentirá um homem quanto mais tiver extraído desse tipo de poder a sua noção de valor pessoal. Uma mudança de valores e reencontro com os fundamentos da inteireza de seu Ser vem acontecendo.

As distorções deixadas pelo passado da humanidade e de uma educação feita por mães machistas são tantas que se tornaram o cenário cultural. No entanto, a consciência de que novas escolhas podem ser feitas liberta todos para novas possibilidades. A mulher-mãe rancorosa e ressentida pela dominação ou maus-tratos do masculino beligerante tende a ter atitudes controladoras, manipuladoras e a transmitir a impossibilidade da relação de confiança que gera a entrega.

Os homens assim criados rejeitam os cuidados femininos, entendendo-os como controle, temendo o envolvimento sentido como sufocante. Ou os usam como crianças crescidas, fazendo das mulheres fontes inesgotáveis de doação, fortes e que dispensam cuidados, sem oferecer a elas o seu complemento viril, protetor e provedor. Mostram-se incapazes de acolhê-las quando frágeis, doentes ou envelhecidas. Alimentam a expectativa de um desempenho de sucessos, competência e produtividade próprios do modelo competitivo. Assim, os homens acabam por oscilar entre a hostilidade e a dependência, atitudes imaturas e restritivas.

Consciências em evolução, costumes em revisão, equívocos de papeis têm acontecido na busca de compreender o cuidado como essência de um feminino amoroso e saudável. Porque também as mulheres foram competir usando armas masculinas nessas disputas. Isso provocou o adoecimento de todos. Homens e mulheres precisam libertar-se primeiro desses fantasmas do passado, dessas fórmulas condicionadas de visão para ter uma relação de encontro. Precisam tocar seu próprio feminino, capaz de um profundo mergulho no sentimento, que é muito além da emoção.

PRÓPRIAS ESCOLHAS

Estamos vivendo um momento em que cada vez mais homens assumem sua capacidade de cuidar, de sentir e transformar fatos em experiências internas de vida. Cada vez mais, homens valorizam as tarefas que eram tidas como femininas, se envolvem com os filhos e desejam ter um lar, não uma casa simplesmente, mas um espaço de aconchego e acolhimento. A maior liberdade humana é poder fazer suas próprias escolhas por sintonia com seu próprio Ser e não por heranças infelizes de um passado de relações de desamor.

O poder que se estabelece na competição/dominação/submissão é destrutivo ao amor e só gera ódio/ressentimento/rancor. Cedo ou tarde, isso terá um preço. Para o planeta, é a ameaça atual de destruição dos recursos naturais essenciais à vida. Para o humano, as relações de desrespeito à essência de sua totalidade que inclui o sentir. O sentimento só é despertado e tocado pela delicadeza, pela gentileza, pela ternura. Nas relações de casal, a disputa de poder resulta na impossibilidade do encontro. Tem de haver uma dedicação ao cultivo, à escolha feita, que vai muito além do imediatismo de respostas estereotipadas pelo modelo produtivo interventor.

Relações de amor não são um dever, como costuma estabelecer o “código dos machos”, sempre prontos a usar suas espadas sem compaixão, carregando apenas a sensação de “cumprir o dever”. Por muito tempo e para muitas pessoas, casamentos significaram “tarefas” a serem cumpridas na vida “bem-sucedida”. Mas relações de amor são méritos. Méritos se conquistam ao aprender que a espada deve ser transformada em um cajado. O instrumento de força guerreira pode se transmutar em um instrumento de apoio e símbolo de sabedoria.

O sábio anda pelo mundo com o cajado capaz de ajudá-lo nas travessias difíceis e para se defender quando houver necessidade, sem a obrigatoriedade de ferimentos fatais. Ele sabe que guerras se vencem com 60% de vitórias, pois mais que isso signifique uma derrota que humilha os oponentes. Qualquer ser humilhado, ressentido e acuado volta com forças de destruição aumentadas. Assim, a beligerância continua a ser alimentada.

O sábio sabe que se deve gastar apenas 50% das energias em qualquer confronto. Os outros 50% devem ser usados para construir o alicerce do novo tempo que virá após o confronto – novas bases, novo modelo de relações, de sociedade. O sábio é aquele que usa informações para aumentar seu conhecimento, mas que soma o conhecimento aos sentimentos, decodificando-os internamente, e transformando-os em sabedoria.

O caminho do guerreiro ao sábio é o caminho da maturidade do masculino em cada um de nós, seres humanos. Assim são os homens mais evoluídos: não se deixam arrastar pelas provocações das disputas e competições. Sabem do seu lugar e da sua força, sem fazer alarde disso. Podem ser sólidos companheiros para as mulheres e emanam essa capacidade de sustentação e apoio para seus filhos. São aqueles que acolhem seu próprio feminino como uma força de criação que os aproxima do divino. Encontraram a liberdade de escolher a paz e de transcenderem seus próprios impulsos.

(*) Mé­di­ca/psi­co­te­ra­peu­ta Con­sul­tó­rios Pro­Cu­rar-se - Tel: (31) 3297-5511.


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