Não tem jeito. Qualquer hábito ou comportamento humano - seja esporte, religião, tradição ou costume antiquados - que se baseie na ignorância, na violência e na covardia, não dura para sempre. O novo, já cantava Belchior, sempre vem. E vence. É só uma questão de tempo, paciência e amor à causa nova.
Foi o que decidiu, por 68 votos contra 55, o Parlamento da região autônoma da Catalunha, na última quarta-feira de julho, ao acatar uma petição assinada por 180 mil pessoas, pedindo o fim dessa prática bárbara e sangrenta contra os animais.
Eu estava na Espanha quando essa decisão política foi tomada e acompanhei toda a acalorada discussão pela imprensa local. De um lado, os donos das plazas e corridas de touro, alegando que a medida tiraria o meio de sobrevivência de milhares de pessoas envolvidas em criar, manter e vender os animais para o sacrifício. E também os toureiros, relembrando quantos touros praticamente invencíveis já tinham matado, conquistando fama, poder e dinheiro ao proporcionar esse espetáculo dantesco à população. Um toureiro famoso chegou a declarar que, se os políticos perguntassem aos touros como prefeririam morrer, eles certamente responderiam: "com honra, orgulho e bravura, sob a espada de el matador".
De outro lado, as ONGs de defesa dos direitos dos animais, afirmando que as pessoas mais jovens já repudiavam naturalmente essa tradição, não indo mais ver os animais morrerem. Ao contrário de seus pais e avós - que a viam não como crueldade, mas como obra de arte e prova de coragem, razões essas por que aplaudiam os toureiros e chegavam ao delírio, na hora da estocada fatal.
ORGULHO BESTA
Eu estive nas touradas de Madri, em agosto de 1985. E testemunhei esse horror, essa barbárie ao vivo, que ainda hoje é realidade nas demais regiões do país recém-campeão mundial de futebol. Confira o relato que fiz, à época, e dê o seu voto:
- “Era um domingo. Eu estava entre os milhares de torcedores contra um só inimigo: o touro. Os heróis nacionais do dia, eu ouço no alto-falante, são os ‘corajosos’ El Bormujano, Raul Sanchez e Cesterito. Vestidos de azul-marinho, com detalhes bordados em ouro, eles são anunciados como ‘triunfantes matadores’.
Eu olho ao redor e me vejo num pequeno estádio de futebol, em dia de clássico. Por fora, uma obra de arte preservada da arquitetura moura. Por dentro, arquibancadas e cadeiras comuns. No lugar da grama, uma arena de areia batida, como aquelas onde os romanos se divertiam, vendo os cristãos sendo devorados pelos leões.
Os clarins tocam e tem início o cortejo covarde.
Primeiro, entram três cavaleiros, como na Idade Média: protegidos e armados até os dentes, como se fossem defender a Espanha da invasão dos bárbaros.
Depois, os "picadores". Seis homens vestidos de azul, preto e prata. Cada um com uma enorme e pontuda lança nas mãos. E, por fim, os "banderilleros". Mais de uma dúzia de homens, vestidos de roxo e carregando espadas, como se fossem defender Deus da ira de algum demônio.
A banda de música é mal ouvida pela multidão aos gritos. O cortejo faz uma meia lua na arena e sai sob os aplausos e o orgulho da plateia. E um funcionário ergue uma placa com o nome e o peso da primeira vítima: Lunar, 466 quilos, já previamente espetado na coxia, para entrar com dor e raiva.
Começa a festa.
Lunar corre daqui para ali, bate a cabeça nas paredes de madeira e vê o seu algoz entrando esticado e olhando a plateia. Quando o animal corre ao seu encontro, o toureiro esconde-se atrás de uma proteção de madeira e os clarins anunciam a entrada dos "picadores": O povo aplaude e, Lunar, coitado, tenta atacá-los. Em vão. Nem os cavalos, protegidos até as canelas por mantas de couro e aço, tomam conhecimento dos seus chifres.
Lunar continua atacando-os até cansar. O povo também. Aí, o primeiro "picador" lhe enfia uma lança nas costas. O touro não sai do lugar, furioso que está. Um segundo "picador" lhe enfia a segunda lança. Nada. Ele continua atônito. Os dois cavaleiros, então, seguram suas respectivas lanças com as duas mãos e aprofundam o mesmo buraco, fazendo jorrar a primeira erupção de sangue.
Lunar empaca em dor ou medo pelo que vem pela frente. Uma espécie de juiz gesticula que ele não está bem. A banda toca uma música de despedida e cinco vacas são soltas na arena, para Lunar se sentir amparado e deixar o recinto. Claro. Sai sob vaias.
A SEGUNDA VÍTIMA
Ela é Rumbero, de 472 quilos. A p1ateia bate palmas. Os turistas, porém, que parecem ser maioria, como eu, não. O 'baile', como chamam a evolução dos figurantes e sua vítima, recomeça com a reentrada dos "picadores'.
A primeira picada é certeira. Entra bem no meio das costas de Rumbero, que se ajoelha de susto e dor. Uma menina, de nove anos, comendo pipoca na minha frente, pergunta para a mãe se a lança é de verdade. Rumbero já é puro sangue no dorso e no pescoço, após outras quatro fincadas. É quando entram os "banderilleros". Cada um deles traz um feixe de pequenas e mais finas lanças, enfeitadas com bandeirinhas multicoloridas, daí o nome.
E no mesmo ritual, sem chance alguma para o animal, eles começam a espetá-lo.
A multidão aumenta os aplausos. O "banderillero" que demora enfiar a sua lança é vaiado, enquanto o touro corre, a esmo e tonto, tamanha quantidade de aço enfiado e dependurado na sua carne, fazendo escorrer sangue da sua pele e músculos.
É quando, cansado, mais vermelho do que negro, como era antes, Rumbero vê seu grande adversário, "El Matador", entrar já triunfal na arena, também vestido, tal qual o touro agora, com uma capa vermelha. Escondida nela, para dar aquele charme, ele traz uma espada.
Nada entusiasma o touro, que continua vertendo sangue. Ele sente atração pelo movimento da capa vermelha. Tenta ir até o seu matador, mas não consegue. Cai duas vezes, sob uma vaia monumental. Os turistas tiram fotos. O povo, impaciente, pede para o toureiro matá-lo logo. Ele vai até o gradil, troca de espada e volta. Aquela era de mentira. A de verdade, agora oficial, tem o dobro do comprimento.
Rumbero só falta se ajoelhar à sua frente, suplicando o golpe mortal. O toureiro olha a plateia e atende seu pedido. Mas não é feliz. A espada de aço, com mais de um metro de comprimento, parece ter pego em algum osso do animal. Só entra até a metade.
Rumbero colabora. Ajoelha mais ainda, em dor, para facilitar. O "El Matador" capricha na pontaria e enfia a espada até o toco. Ela some dentro da vítima, que cai ainda se mexendo. Vem um toureiro auxiliar e dá-lhe uma punhalada mortal na nuca.
Rumbero morre. O povo delira. Alguns funcionários entram correndo na arena e, com a ajuda de três cavalos, atrelam e saem arrastando seu cadáver. Outros vêm atrás, jogando areia para secar e tampar o sangue que desenha uma mandala vermelha no chão.
MULATO, O TERCEIRO
Tudo combinado: "...Esse touro agora é bravo!" - uma voz anuncia ao microfone a entrada de Mulato, de 552 quilos, para a plateia até então decepcionada com a não resistência das primeiras vítimas. O teatro macabro se repete. A banda toca, de propósito, mais furiosa ainda. E os "picadores' o sangram feito um espeto de palitos, com um detalhe incomum.
Uma das lanças não consegue sair de seu corpo, tamanha a profundidade do golpe. O picador" tenta, meio sem graça, retirá-la. Continua tentando, até ela sair com um pedaço enorme da carne de Mulato, que fica grudado na ponta da lança. Tenta, tenta se desvencilhar da carne, até que ela voa longe.
Os outros "picadores" enfiam suas lanças quase que no mesmo lugar e, de longe, dá pra ver uma entrada em carne viva, aberta nas costas do animal, com pedaços também visíveis de pele exposta e dependurada. Mulato perde a força e mal consegue enfrentar a turma dos "banderilleros', que entra e repete o gesto. Enfiam igualmente suas lanças nos mesmos lugares, duas de cada vez, e o sangue de Mulato espirra pra todo lado, formando poças no chão.
Toca a música e o terceiro "El Matador" entra na arena. O povo o aplaude. Eu fico me perguntando para quê, se Mulato, para a tristeza geral, já parece um animal morto? Tão morto que o toureiro lhe dá as costas, num ato de extrema "coragem". E faz sucesso, com a plateia chegando ao gozo.
Eu pergunto para outra menina do meu lado, se ela está gostando. Ela sorri, responde que sim. Mulato, não. Ele tem a respiração pesada. Nota-se pelo movimento de sua barriga, que pinga sangue sem parar. Ele não tem mais força, o que enfurece a multidão. Ela fica de pé e pede a sua morte:
'Mata! Mata!', gritam todos. O toureiro faz charme. Pede paciência à torcida, que se enfurece mais ainda.
A pressão continua. E como o animal, sangrando demais, não reage, "El Matador" chuta-lhe impacientemente a cara.
O touro tenta reagir e cai de novo. O toureiro aproveita e fica cara a cara com ele, num novo gesto de extremíssima "coragem". Chega até a pegar no chifre de Mulato, que continua imóvel.
Apenas se esvaindo em sangue. Nada do lado do animal e todo tipo de delírio nas arquibancadas, é o toureiro agora quem fica bravo.
COVARDIA FINAL
- Mata logo! Mata logo!
Eu olho para os lados e está todo mundo, crianças e velhos, em estado de euforia. O toureiro balança a cabeça, como se criticasse a moleza do touro, e vai buscar a "verdadeira" espada. O seu andar lembra uma modelo desfilando num "fashion show".
Ele volta, faz aquela pose meio afeminada de ficar nas pontas dos pés e com o corpo curvado, como se estivesse sendo documentado por todos os fotógrafos do mundo, e lhe dá o golpe certeiro.
O corte é tão profundo que a ponta da espada transpassa todo o corpo e sai debaixo da barriga de Mulato, levando parte de seus testículos. O sangue jorra numa única bica para cima, mas o animal não morre. Mulato só treme e urina muito, compulsivamente.
Com ar de preguiça, "El Matador" chama outros toureiros auxiliares para - pasmem! - cansarem o animal mais ainda, até a sua morte por esvaziamento covarde de sua centelha de vida.
Aí sim, atendendo aos pedidos do povo enlouquecido de prazer sádico, o toureiro se volta, orgulhoso, cheio da pose e retira a espada transpassada de orgulho do corpo do animal.
O estádio vem abaixo de tanta emoção e aplausos. La fiesta não para. Ao microfone são anunciados os nomes das próximas vítimas: Recovito, Cara Belo e Desprendido, enquanto os funcionários jogam areia sobre o sangue arrastado de Mulato.
Loucura
“As crueldades que os animais sofrem pelas mãos dos homens estão além da nossa compreensão. Por favor, ajude a parar com esta loucura.”
Richard Gere, ator
Maltrato
“Maltratar os animais é demonstrar covardia e ignorância.”
Leon Tolstói, escritor
Igualdade
“Não existe uma diferença substancial entre o homem e os animais, no que se refere às suas capacidades mentais. Os animais, tal como o homem, manifestam prazer e dor, alegria e tristeza.”
Charles Darwin, naturalista
Civilizado
“Primeiro foi necessário civilizar o homem com o homem. Agora, é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais.”
Victor Hugo, poeta e escritor
Compaixão
“O pressuposto de que os animais não têm direitos e a ilusão de que o nosso tratamento para com eles não está sujeito a qualquer moral é um escandaloso exemplo de ocidental brutalidade e barbaridade. Compaixão universal é a única garantia de moralidade.”
Arthur Schopenhauer, filósofo
Ética
“A não violência nos leva ao mais elevado padrão ético, que é o objetivo de toda a evolução. Até nós pararmos de magoar todos os outros seres vivos,continuaremos selvagens.”
Thomas Edison, inventor
Alma
“Enquanto os homens massacrarem os animais, vão-se matar uns aos outros. Quem espalha a semente de morte e de dor não pode colher amor e alegria. Os animais partilham conosco o privilégio de ter uma alma.”
Pitágoras, filósofo e matemático
Sabedoria
“A grandeza de uma nação e o seu progresso moral podem ser julgados pela forma como os seus animais são tratados.”
Gandhi, político e pacifista