Lund acertou em cheio quando optou pela área de Lagoa Santa na sua procura por fósseis. Nessa região concentra-se grande quantidade de grutas localizadas em maciços calcários que fazem parte de um enorme conjunto rochoso denominado Grupo Bambuí. Este teria uma antiguidade beirando os 700 milhões de anos e os maciços atravessam o Estado de Sul para Norte em grande parte escoltando o nosso rio-mor – e maltratado – São Francisco.
Lund descreveu em 1837 a região onde realizava seu trabalho com “...despojos fósseis. Todos eles, sem exceção alguma, foram encontrados em cavernas. Estas cavernas estão situadas nas montanhas calcárias... do centro do Brasil. Uma cadeia de montanhas... destaca-se da serra mais importante do planalto central – a Serra do Espinhaço – perto da capital de Minas (na época Ouro Preto), e alarga-se para o noroeste, servindo de separação às águas do Rio das Velhas e do Paraopeba. Esta cadeia tem sido, até o presente, o campo principal das minhas explorações”.
Para a preservação dos fósseis de vertebrados, nas grutas encontra-se ambiente propício. Ao ocorrer um meio básico, ossos e dentes preservam-se com facilidade, o que não acontece em ambientes ácidos como podem ser os terrenos de cerrado ou o ambiente de floresta. Alguns ossos de animais recolhidos em grutas de Minas Gerais já foram datados. Sabemos que as espécies às quais pertenceram viveram entre 30 e 11 mil anos atrás.
Em relação ao ambiente de gruta, há animais que não as frequentam, outros que utilizam as cavernas para alguma finalidade, mas precisam delas sair para completar seu ciclo de vida. Eles não são capazes de viver somente no ambiente subterrâneo. Os morcegos são os animais mais conhecidos desse grupo denonimado troglóxenos (“estranhos às grutas”).
Há ainda os que podem completar seu ciclo de vida tanto dentro quanto fora das cavernas, como a maioria dos invertebrados que se encontram em cavernas, tais como aranhas, tatuzinhos, baratas... São os troglófilos (“amigos das grutas”). Já os troglóbios (“vida nas cavernas”) são um grupo mínimo de seres que têm seu ciclo de vida completo no interior delas, como acontece com uns poucos invertebrados ou mesmo com alguns raros peixes. São obrigatoriamente cavernícolas.
De que maneira chegaram até o interior das grutas os esqueletos que, fossilizados, foram nelas coletados? Explicar os achados que pertencem a animais, como por exemplo os morcegos, é o óbvio. Mas a maior parte dos fósseis consiste em restos pertencentes a animais que não frequentavam as grutas.
Carregar um mastodonte
Corujas que habitavam o interior das cavidades na penumbra regurgitavam as partes duras dos animais que capturavam, assim introduzindo nelas tais restos que poderiam tornar-se fósseis. Não se descarta que alguns animais possam ter penetrado numa gruta e, tendo-se extraviado, não conseguiram retornar. Outros, em entradas irregulares, poderiam sofrer uma queda acidental. Mas fósseis desses animais seriam raridade, exceções. Numa reação instintiva de defesa, poucos são os mamíferos que se aventuram a penetrar na escuridão.
Lund acreditava que alguns carnívoros poderiam carregar para o interior das cavernas suas vítimas para nelas as devorarem. É possível que, em alguns casos, tal situação possa ter acontecido. Mas essas refeições teriam ocorrido na penumbra das entradas, o que não explica os esqueletos localizados em galerias do interior nem a presença de peças pertencentes a animais de grande porte nas grutas. Nenhum predador seria capaz de carregar um mastodonte para dentro de uma gruta.
A maior parte dos restos fósseis encontrados no interior de cavernas teve uma causa comum que nelas os introduziu: a água. Foi ela que, ao longo de dilatado tempo, esculpiu e adornou as galerias de cada gruta. E foi ela que carreou para o interior a maioria dos animais que acabaram depositando-se galerias adentro.
O transporte foi realizado por rios ou por córregos temporários que atravessavam ou invadiam as cavernas e que carregavam cadáveres flutuantes de animais que se afogavam ou que morriam à beira deles, sendo arrastados pela correnteza. Grutas labirínticas ou com percursos sinuosos poderiam reter no seu interior esses cadáveres. Após as suas partes moles apodrecerem, os ossos depositavam-se no leito dos remansos ou no fundo de lagos endógenos.
As enchentes inesperadas, possivelmente, seriam mais eficientes para carregar candidatos à fossilização, pois surpreenderiam e poderiam arrastar animais doentes ou filhotes que, naturalmente, estabeleciam-se ao longo dos cursos de água. Confirma essa opinião o fato de que nas grutas é frequente o achado de animais jovens fossilizados. Mergulhadores encontram hoje grutas fossilíferas submersas. Como nestas, em grutas atualmente secas, no passado, teriam ocorrido inundações totais ou parciais que carrearam para seu interior os futuros fósseis.
Em regiões bem preservadas, sem atividade antrópica, algum observador que permanecesse à margem de um rio ou regato não demoraria muitos dias para ver, flutuando, o cadáver de algum animal. Se esse rio atravessasse ou inundasse uma gruta, esta poderia vir a retê-lo. Milhares de anos e variados eventos climáticos propiciaram ocasiões para que isso acontecesse. Sabemos que entre 30 e 10 mil anos ocorreram diversos picos de frio nos quais houve incremento da pluviosidade.
Esse, ao que parece, seria o processo mais comum que permite explicar o fato de se encontrarem ossadas, especialmente de mamíferos, no interior das grutas.
Obras de arte
Pteronotus gymnonotus, esqueleto incrustado em chão estalagmítico - Imagem: Reprodução
Os fósseis encontrados em caverna não têm padrão definido. Por exemplo, a coloração dependerá, frequentemente, da atuação sobre eles da água com variadas substâncias nela dissolvidas. Há fósseis de intensa coloração escura devido ao óxido de manganês, ocre pelo ferro ou amarelados pela argila. Alguns restos são muito friáveis. Para melhor preservá-los, no laboratório aplica-se, geralmente, um endurecedor, cola diluída em água, por exemplo.
Outras peças, impregnadas por calcário, tornam-se mineralizadas, adquirindo a consistência da rocha. Ocorrem também verdadeiras obras de arte quando sobre a peça deposita-se fina camada de calcário, como que a protegê-la com delicado invólucro. Às vezes, a camada calcária pode ser espessa.
Há peças que se encontram quase aflorando, soltas nos sedimentos. Outras, envoltas por camadas de argila ou areia. Há também as que estão firmemente encobertas por dura camada de brecha (areia ou cascalho compactados por carbonato de cálcio). Diversos sofreram desgaste por rolamento ou fragmentações, uma vez que o ambiente nas cavernas, muito frequentemente, é dinâmico devido à ação, em especial, das águas que nelas penetram.
Marcas de dentes de roedores que rasparam a superfície de ossos ainda frescos e até perfurações feitas por coleópteros podem ser percebidas. Mas essas são ocorrências raras. Para seguro resgate das peças fósseis, além da paciência sem pressa e ferramentas apropriadas, é necessário possuir conhecimentos de anatomia e habilidade manual. No laboratório ocorre a complementação do trabalho de campo com a preparação do material resgatado e o seu estudo.
Roedor Trichomys apereoides (punaré ou rabudo) com trabalhadores numa gruta - Imagem: Abrandt
A respeito dos achados fósseis na região, ninguém melhor que o pai da paleontologia americana para descrever um dos seus achados e sua interpretação. Lund escavava em Cerca Grande. “Após três dias de trabalhos contínuos, achei-me de posse de uma coleção considerável de restos de dois animais fósseis, havendo exemplares diversos e perfeitamente conservados.”
“A terra na qual se acharam essas ossadas era argila comum rubro-pardacenta, que por toda a extensão destas regiões forma a camada superior, e de que estas grutas estão mais ou menos cheias. Além deste elemento... aqui e ali encontravam-se pequenas camadas, formadas exclusivamente de areia e seixos rolados. Imediatamente abaixo da crosta de estalagmite estava a terra fortemente impregnada de infiltração calcária, o que lhe dava consistência pétrea; mas, à medida que se penetrava mais profundamente, a infiltração calcária decrescia, tornando-se a terra menos coerente e mais fácil de trabalhar.”
“As duas espécies de animais de que provêm os ossos pertencem uma ao grupo dos cães, outra ao grupo das pacas... Os ossos achavam-se misturados e sem ordem... eram tão numerosos que de cada punhado de terra destacado pela alavanca era possível retirar uma considerável porção. Quanto ao seu estado de conservação... alguns achavam-se inteiros e sem o mínimo estrago, sucedendo isto principalmente aos ossos curtos... Os grandes ossos tubulares só em parte se achavam assim conservados, apresentando-se muitos quebrados... Pequena parte dos ossos apresentava cor amarelo claro cera, por vezes mosqueada de manchas negras... a maior parte, porém, tinha a cor negra.”
A respeito do estado e aparência dos fósseis, Lund fez pitoresca descrição. Percebe-se um tanto de admiração diante do novo trabalho, num escrito de 1837, um dos primeiros por ele redigidos sobre seus achados em grutas. “Em geral os ossos fósseis... acham-se inteiros e conservam suas menores saliências, as arestas e as cristas mais delicadas; na superfície têm uma bela cor amarelo-avermelhada de ocre, e a fratura apresenta o branco mais puro. São mais leves que os ossos frescos e a tal ponto quebradiços que se esfacelam entre os dedos a um contato imprudente... Parte da terra em que são encontrados fica-lhes sempre aderente. Quando a argila tem depósito calcário, adere de tal modo aos ossos que se torna impossível separá-la. Em casos mais raros... têm as células de seu tecido cheias de matéria pétrea... neste estado merecem o nome de ossos petrificados... Quanto às alterações mecânicas... que os ossos experimentam, podemos agrupá-las em três classes... a primeira, fraturas e fendas... às quais se une muitas vezes um achatamento... de toda a peça... A segunda... procede da ação dos dentes de animais carnívoros... também... o vestígio dos dentes de pequenos roedores... A terceira classe... consiste no gasto mais ou menos sensível das arestas e cristas dos ossos”.
Imensidão das grutas
Em Minas Gerais ocorrem grutas que têm grande importância por diversos motivos: históricos, pelos achados nelas realizados, pelo tipo de vida único dos seus troglóbios, pelos registros artísticos de pintura rupestre, por fazerem parte do patrimônio histórico da nação, uma vez que o homem primitivo viveu em algumas delas ou por estarem abertas à visitação pública. Na imensidão do número das grutas calcárias mineiras (mais de 500 estão catalogadas) é difícil destacar umas poucas entre elas: com qualquer critério sempre faltará alguma.
Há as que foram, infelizmente, muito depredadas, como a Gruta dos Cristais, que era riquíssima nessas estruturas de calcita, em sua maioria destruídas. A Lapa Vermelha de Lagoa Santa situava- se nos arredores da cidade à beira da estrada que chega da capital do Estado, Belo Horizonte. Nela, Lund encontrara, dos primeiros na América, restos humanos fossilizados. E ainda nessa gruta descobriu fósseis de espécies extintas, como capivara gigante, cachorro, tigre-de-dentes-de-sabre, tatu gigante, paleolhama, preguiças terrícolas e de espécies viventes, como a raposinha, anta, taiaçu e onça.
À visitação pública estão abertas três grutas. A da Lapinha, com belíssimos e variados espeleotemas, tem pouco mais de 500 metros de extensão e uma profundidade máxima de 40. Lund a conheceu, mas nenhum fóssil encontrou nela. Integra um conjunto de grutas no mesmo maciço calcário e está situada no município de Lagoa Santa.
A Gruta de Maquiné, localizada no município de Cordisburgo, a 120 quilômetros da capital do Estado de Minas Gerais, desde a década de 1960 está aberta ao turismo. Já referimos a importância simbólica dessa gruta, a primeira pesquisada por Lund, que dela fez soberba descrição e topografia acurada. Com 650 metros de comprimento, quase plana e de ornamentação excepcional, tem por volta de 500 metros de percurso preparados para visitação.
Em Sete Lagoas, a meio caminho entre Cordisburgo e Belo Horizonte, localiza-se a terceira gruta turística, a Rei do Mato, de beleza quase agressiva pelos surpreendentes e inesperados espeleotemas que a ornamentam. Seus acentuados declives, fáceis de serem percorridos devido ao equipamento instalado, e duas colunas esguias que unem o teto ao chão, com mais de 20 metros de altura e sem igual em outras grutas, têm ornamentações que provocariam inveja ao mais conceituado ourives árabe. A porção aberta à visitação é de 250 metros, um quarto do comprimento total da gruta. No mesmo maciço calcário há um pequeno ducto que tem testemunhos de ocupação humana pré-histórica.
Crânio de luzia
Ainda na área arqueológica é preciso destacar a Gruta de Confins, onde pesquisadores da Academia Mineira de Ciências encontraram, na década de 1940, o denominado Homem de Confins; o conjunto de Cerca Grande, no qual o Museu Nacional do Rio de Janeiro realizou, na década de 1960, importantes descobertas; a Lapa Vermelha de Pedro Leopoldo, local onde uma expedição franco-brasileira, na década de 1970, encontrou o crânio de Luzia, datado de 11.500 anos. É considerado, até o presente, um dos mais antigos da América.
Na década de 1980, em abrigo localizado em Santana do Riacho, o arqueólogo André Prous, um dos descobridores do crânio de Luzia, coletou numerosos esqueletos com idade em torno de 11 mil anos. O arqueólogo mineiro Walter Neves realiza desde o final do século XX, em grutas da fazenda Jaguara (Matozinhos), o resgate de importante conjunto de enterramentos.
As grutas de interesse paleontológico são ainda mais numerosas. O que ocorreu em termos de achados na região de Lagoa Santa poderá ser repetido em outras áreas do Estado como em Arcos, Pains, Parque do Peruaçu, Montalvânia, Montes Claros ou Curvelo, por exemplo, quando nelas surgir um Lund para explorá-las. De todas as pesquisadas pelo pai da paleontologia americana, talvez a Gruta do Baú (Matozinhos) mereça a primazia devido aos resultados obtidos por ele tanto pela quantidade quanto pela variedade dos achados, e a do Sumidouro, pelo significado científicofilosófico, como já assinalado.
Após Lund, a arqueologia teve maior desenvolvimento na área de Lagoa Santa do que a paleontologia. As mais de 12 mil peças da megafauna fóssil enviadas pelo naturalista dinamarquês para sua pátria de origem quase se tornaram um sinal desencorajador para quem desejasse conseguir novidades paleontológicas na região. Após o ingente trabalho de Lund, poucas novidades poderiam surgir.