Leve feito libélula

“Salvei a humanidade não tratando dela”.
Cíntia Melo - redacao@revistaecologico.com.br

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Conversar com Ângelo Machado é desfazer-se da ideia de que o profissional da ciência é um sujeito chato, sério, pesado e carrancudo. O sorriso simpático e acolhedor e as múltiplas feições exibidas no decorrer da entrevista à Revista ECOLÓGICO são prova disso. Nas quase três horas de conversa, alternou momentos de intensa felicidade ao falar dos netos; de saudade, ao recordar a mulher Conceição, que se foi há dois anos; e também de esperança – quando, por várias vezes, falou das crianças (para ele a única promessa de um planeta ecológico) – e de generosidade, ao exibir sua coleção de milhares de libélulas, paixão que o acompanha desde menino. “As libélulas fazem minha velhice mais feliz”. Aos 75 anos, o cientista, escritor (são mais de 30 livros publicados), ambientalista, professor-emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos criadores da Fundação Biodiversitas confessa que sempre foi biólogo, apesar da carreira na Faculdade de Medicina. “Só me tornei médico porque, na época, não havia o curso de Ciências Biológicas”. Para honrar o juramento de Hipócrates feito na formatura, se viu obrigado a abster-se do exercício da profissão.“Salvei a humanidade não tratando dela”.

REVISTA ECOLÓGICO: QUANDO COMEÇOU A PAIXÃO POR INSETOS?

ÂNGELO MACHADO: Sempre gostei de bicho. Desde menino. Todo menino gosta de bicho, não é? As crianças aprendem a falar ‘papai’, ‘mamãe’ e ‘au-au’, porque têm tendência a gostar de bicho. Talvez eu tivesse um pouco mais que a média delas. Quando via meu pai com um livro na mão, logo gritava: “Livro de bicho, livro de bicho!”. Até em dicionário eu procurava bicho.

É VERDADE QUE O SENHOR COMEU UMA BARATA?

Sim. Eu brinco com essa história e digo que foi assim que acabei revelando a minha mãe meu gosto por insetos. Eu tinha um ano e meio quando ela me pegou debaixo da cama, comendo uma barata. A curiosidade nessa idade é bem típica.

E SUA COLEÇÃO DE INSETOS? QUANDO COMEÇOU?

Viajava para a fazenda do meu pai, no Vale do Rio Doce, e de lá trazia insetos. Era sacristão da Igreja de Lourdes, aqui em Belo Horizonte, na época e conhecia o Padre Pereira, especialista em besouros. Comecei meus estudos ainda menino, já sob a orientação de um entomólogo.

POR QUE OPTOU PELA MEDICINA?

Pensei em fazer Agronomia, onde havia um excelente entomólogo, o Ângelo da Costa Lima, mas vi que teria que estudar muita coisa sem proveito. O curso de História Natural estava apenas começando e o de Medicina já tinha laboratório, trabalho prático e cabei gostando da parte básica. Ainda estudante, fui monitor de histologia e anatomia.

E DEPOIS DA GRADUAÇÃO?

Dei aulas de Neuroanatomia na UFMG durante 28 anos. Quando me aposentei, fiz concurso novamente para o Departamento de Zoologia. Já havia desenvolvido quase 300 trabalhos com libélulas, meu hobby à época. Mas elas acabaram por se tornar minha nova profissão.

AS LIBÉLULAS SEMPRE ESTIVERAM PRESENTES EM SUA VIDA?

Eu era jovem, quando, voltando da fazenda de meu pai com algumas libélulas, minha tia, a escritora Lúcia Machado de Almeida, me disse: “Vá ao Instituto de Educação e procure o professor Nilton Santos. Ele entende de libélulas e poderá lhe dizer o nome dessas.”

E O SENHOR FOI?

Sim. Mas o professor Nilton foi categórico comigo: “Não vou dar nome nenhum, você mesmo vai fazer isso”. Entregou-me sua tese sobre libélulas e disse: “Estude e volte amanhã”. Eu li tudo na maior curiosidade. Em três meses, já estava no Museu Nacional estagiando com ele. Minha paixão aumentou. Dois anos depois, já havia descoberto uma nova espécie.

POR QUE ESCOLHEU A LIBÉLULA?

Porque ela é o ser mais bonito que existe. Só perde para a mulher.

O SENHOR NÃO CHEGOU A EXERCER A MEDICINA?

Para a saúde dos doentes, nunca tratei deles. O juramento de Hipócrates diz que os médicos devem salvar vidas. Eu salvo vida é não tratando de doente.

AINDA ASSIM ACHA QUE VALEU A PENA FAZER O CURSO?

Sim. Porque foi na Medicina que encontrei Conceição, mulher da minha vida, e melhor descoberta que fiz como cientista.

COMO A CONHECEU?

Depois de formado, ela chegou ao meu laboratório para pesquisar a glândula pineal, objeto de meus estudos. Em pouco tempo, notamos que gostávamos mais um do outro que da glândula pineal. Aí, trabalhamos nosso namoro, noivado e o casamento que nos deu quatro filhos e seis netos. Mas também fizemos muita coisa juntos na área científica. Criamos o laboratório de neurobiologia na UFMG e publicamos diversos estudos. A Conceição era uma grande cientista e orientou mais teses de mestrado e doutorado que eu.

O QUE MOVE UM CIENTISTA?

Os cientistas trabalham porque são loucos de curiosidade e não porque querem salvar o mundo. O que nos move é a mesma motivação das crianças pela vida. Crianças e cientistas querem descobrir como funciona o mundo e qual a utilidade de cada coisa. Por isso, no lugar de barrar a curiosidade das crianças deveríamos incentivá-la.

QUE OUTRAS ALEGRIAS, DEPOIS DA CONCEIÇÃO, O SENHOR VIVEU?

O Prêmio Jabuti. Com ele me convenci de que era mesmo um escritor. Quando me tornei professor-emérito da UFMG, e a Conceição fez uma festa para mim, também fiquei muito feliz. Outra grande alegria são meus netos e, claro, as libélulas.

DEPOIS QUE O HOBBY LIBÉLULAS VIROU PROFISSÃO, O SENHOR ARRANJOU OUTRO?

Sim, porque um homem não deve viver sem hobby. Minha família tem muitos escritores: Aníbal Machado, Lúcia Machado de Almeida e Maria Clara Machado. Influenciado, comecei a escrever para crianças.

A CARREIRA DE CIENTISTA AJUDOU NA LITERATURA?

No começo atrapalhou. Meu primeiro livro, “O Menino e o Rio”, foi recusado pela Editora Ática. Disseram que não era literatura, porque ensinava coisas e que também não estavam ligadas à ecologia, por ser ficção. Quem apostou nele – que hoje já tem mais de 30 edições –, foi a Editora Lê.

A CRÍTICA AO SEU TRABALHO LITERÁRIO SE BASEAVA EM QUÊ?

No argumento que diz que cientista é chato e escreve explicando, ensinando. Mas meu objetivo, ao escrever, é despertar na criança o gosto pela leitura. Posso até lhe ensinar alguma coisa, mas isso é secundário. Nem em nome da ecologia um escritor tem direito de fazer um livro chato, porque o gosto pela leitura nasce quando somos crianças. A responsabilidade é muito grande.

O PRÊMIO JABUTI TROUXE O RECONHECIMENTO PELO SEU TRABALHO?

Sim. Foi emocionante. Os cientistas são excessivamente autocríticos. Mas com o Jabuti eu me animei. Descobri que tinha talento para a literatura.

QUAL FOI O LIVRO PREMIADO?

“O Velho da Montanha, uma Aventura Amazônica”, dedicado às esquecidas crianças indígenas do Brasil. Os personagens são reais, descritos a partir do que vivi na Amazônia.

O HOBBY LITERATURA TAMBÉM VIROU PROFISSÃO?

Não. Até dois anos atrás, dei aula de Entomologia. Foram duas décadas ao todo. Hoje, mantenho um escritório no laboratório da UFMG e outro em casa. Divido meu tempo entre escrever e estudar libélulas. Agora, sou um aposentado de profissões.

DE ONDE SURGIU A INSPIRAÇÃO PARA ESCREVER “MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA EM RECEPÇÕES E COQUETÉIS COM BUFFET ESCASSO”?

De tanto observar festas e coquetéis com buffet escasso descobri uma técnica de retirar da bandeja dois salgados de uma só vez. Alguém me disse para fazer uma crônica sobre isso. A ideia cresceu e virou livro que, mais tarde, adaptei para o teatro. Mais de 300 mil pessoas já assistiram à peça.

COMO O AMBIENTALISMO SURGIU NA SUA VIDA?

Meu pai era madeireiro. Eu notava, na fazenda dele, que a cada ano os bichos diminuíam. Isso me incomodava. Um dia, procurei o professor Hugo Werneck. Fiz parte de um grupo de ambientalistas históricos do Centro Mineiro para a Conservação da Natureza, cujo líder era o Hugo Werneck. Célio Valle, José Rabelo de Freitas e eu somos cria do Hugo. Éramos ativistas. Fazíamos reuniões em nossas casas e no auditório da Faculdade de Medicina da UFMG. Juntos, incentivamos o governo a criar parques ecológicos. O Parque da Serra do Cipó, por exemplo, foi criado graças à ação do Centro. Nós trabalhávamos pela natureza.

COM TANTOS TÉCNICOS, O ATIVISMO DE VOCÊS ACABOU SE PROFISSIONALIZANDO?

Sim. As empresas já estavam contratando nossos técnicos para elaborar pareceres ambientais em seus empreendimentos. Foi aí que o Centro e a UFMG criaram a Fundação Biodiversitas.

COMO A BIODIVERSITAS, RESPONSÁVEL PELA ELABORAÇÃO DA LISTA VERMELHA, DEFINE AS ESPÉCIES DA FAUNA AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO?

O critério básico é o decréscimo da população e a área de distribuição da espécie. É um trabalho muito técnico porque, tanto é danoso deixar fora da lista uma espécie que pode se extinguir, quanto colocar nela uma que não está ameaçada. Um exemplo é a anta. Ela não está na lista nacional, porque ainda há muita anta na Amazônia. Mas consta na de Minas Gerais, uma vez que sofre ameaça aqui. Se a espécie tem papel importante na natureza, deve ser preservada. Nosso mérito é mobilizar a comunidade científica que trabalha gratuitamente, subsidiando essa decisão.

COMO ESTA LISTA AJUDA NA PRESERVAÇÃO DAS ESPÉCIES?

Já que não dá para preservar todas as espécies e ecossistemas, temos que priorizá-los, orientando a canalização de recursos e estabelecendo áreas prioritárias para a preservação. Dessa forma, definindo as espécies que merecem proteção especial, colaboramos com a preservação.

O SENHOR ACREDITA QUE CRIANÇAS DESTA GERAÇÃO NÃO CONHECERÃO ALGUMAS ESPÉCIES DA FAUNA E FLORA BRASILEIRAS?

Sim. Fico extremamente triste, mas a possibilidade é real.

PARA O SENHOR, QUAL É O GRANDE NOME DO AMBIENTALISMO MINEIRO HOJE?

Apolo Heringer. Os ativistas dão tiros para todos os lados. O Apolo concentrou seus objetivos na despoluição do Rio das Velhas. Sabemos que para ter êxito ele movimenta, com sucesso, vários setores da sociedade. Por isso, acredito que a Meta 2010 – navegar, nadar e pescar no trecho do Rio das Velhas que corta a Região Metropolitana de BH – será cumprida. Claro que até o ano que vem o rio não estará totalmente despoluído. Mas grande parte dele, sim.

ACREDITA EM DEUS?

Acredito em um Deus meio diferente.  E chego a Ele através da ciência, porque, do contrário, não consigo entender o universo. Esse Deus da religião católica, que castiga, é muito incoerente. Também não creio que Ele tenha criado tudo. Acho mais sensata a ideia de um Deus todo poderoso, que deixa que as coisas se resolvam por si, sem interferir em tudo.

E O FIM DO MUNDO?

Sou um otimista, mas nesse ponto acredito que um dia haverá um final. Ou pela guerra nuclear ou pelas catástrofes ecológicas. Um décimo das ogivas que existem no mundo, hoje, pode destruir todo o planeta. E enquanto tivermos armas nucleares, correremos esse risco. O fim do mundo provocado por uma catástrofe nuclear pode acontecer a qualquer momento. Já, pelo aquecimento global, pode levar 50, 100, 200 anos.

AINDA FAZ PALESTRAS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA AS CRIANÇAS?

Sim. E percebo um aumento da conscientização delas em relação ao meio ambiente. Antigamente, criança tinha medo de bicho e da mata. Hoje, ensina a família a usar os recursos sem desperdício. A grande chance para a sustentabilidade ambiental virá com o poder do voto dessa turminha. Hoje, as crianças colocam o dedo na cara dos pais para defender a mata e o rio. E, no futuro, terão a oportunidade de escolher seus candidatos pensando no meio ambiente e também de cobrar deles as questões que mais as favoreçam.

O SENHOR NÃO TEVE ESSA ABERTURA COM SEU PAI?

Até que, para aqueles tempos, ele era liberal. Mas, mesmo assim, tivemos nossos conflitos. Também não havia essa ligação entre pai e filho como acontece hoje e nem a conscientização ambiental. Só para se ter uma ideia, as pessoas usavam bodoque para matar passarinho.

A POLÍTICA AMBIENTAL DE MINAS GERAIS VAI BEM?

Acho que sim. Começou no governo do Eduardo Azeredo, com a participação do José Carlos Carvalho. Depois, houve um apagão ecológico, que foi a era Itamar Franco. Com a volta do José Carlos, que é um excelente técnico, estamos dando exemplo.

COMO AVALIA A ATUAÇÃO DO GOVERNO LULA EM RELAÇÃO À AMAZÔNIA?

Não é ruim, não. O mundo cobra do Lula uma postura séria em relação à Floresta. E ele não é bobo. A escolha da Marina Silva na pasta do meio ambiente foi excelente. E o Minc, mesmo um pouco desajeitado, não fica calado e já conseguiu que muito ministro abrisse o jogo sobre a política ambiental do governo. O Lula, muito esperto, não demitiu a Marina e não vai demitir o Minc.

QUAL O FUTURO DA FLORESTA?

O desmatamento da Amazônia não será como o da Mata Atlântica. Mas, nas próximas décadas, com os impactos trazidos pelo aquecimento global, principalmente, devido ao consumo das maiores potências que poluem excessivamente a atmosfera, a floresta poderá sumir.

O QUE ACHOU DA ELEIÇÃO DE OBAMA?

Minha velhice está me permitindo ver muita coisa boa acontecer. A eleição do Obama é uma delas. Ele é um gênio. Movimenta milhões de pessoas com a mensagem: “Yes, we can”.

PARA O SENHOR, O QUE É O AMOR?

Essa é uma pergunta difícil. Mas acho que o amor é a coisa mais importante da vida. Tanto que é impossível ser feliz sem ele. Pena que está tão banalizado. Dizer ‘te amo’ ao fim de um telefonema hoje é o mesmo que dizer ‘tchau’. O amor é muito mais que isso. Ele nos leva às libélulas, às orquídeas e aos seres humanos.

QUE MENSAGEM O SENHOR DEIXA AOS NOSSOS LEITORES E QUAIS SEUS PLANOS PARA O FUTURO?

Não viva sem ter um hobby. Quero continuar estudando libélulas, fazendo literatura, palestras e respondendo às cartas das crianças que me escrevem. Pretendo viver 100 anos. Quando estiver com 99, vou fazer um requerimento pedindo prorrogação. Como este país é muito burocrático, até que o documento seja indeferido...


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